Entre os dias 7 e 11 de novembro foi realizada na cidade de Rio de Janeiro a décima edição do Festival Internacional de Cinema de Arquivo (REcine), voltado este ano a pesquisar, refletir e homenagear a influência e participação italiana na fundação do cinema brasileiro e no seu desenvolvimento. Palestras, debates, lançamento de uma revista, exposição fotográfica, oficinas de vídeo e mostras informativa e competitiva. Uma rara oportunidade de ter contato com a riqueza dos arquivos audiovisuais.
O Archivo Nacional é a maior instituição arquivística do Brasil. Responsável pela guarda, tratamento técnico, acesso e difusão de documentos oriundos dos três poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário) e de natureza privada (provenientes de pessoas, famílias ou entidades), este órgão tem como missões não só preservar a história e a memória do Brasil e dos vários grupos étnicos que participaram na sua construção, mas também facilitar ao grande público o acesso a um estupendo acervo de documentos, livros, manuscritos, fotos, filmes, mapas e muita história.
Pesquisadores, estudantes e visitantes se encantam com a beleza do seu prédio, um restaurado conjunto arquitetônico de estilo neoclássico construído em 1868 (antiga sede da Casa da Moeda), localizado na Praça da República (mais conhecida como Campos de Santana, no Centro), que já foi tombado Patrimônio Cultural e Artístico da Cidade.
Para divulgar e incentivar a pesquisa em seu acervo, o Arquivo Nacional promove vários eventos por ano, dentre os quais se encontra o Festival de Cinema de Arquivo, que é realizado em seu próprio prédio. Seu senhorial pátio interior, cercado de palmeiras imperiais, que já foi cenário de filmes e telenovelas, parece ser o marco perfeito para projetar, no entardecer-noite, o melhor cinema de arquivo.
X REcine: a Itália e o Cinema Brasileiro
Tudo começou com os já míticos irmãos Segreto, chegados de Salerno em 1898: Alfonso, quem com a câmera Lumière filmou, flutuando no mar, os primeiros fotogramas da Baia de Guanabara (a gênese do cinema brasileiro), e Pasquale, que abriu a primeira sala de projeções no Rio de Janeiro. Até 1903 eles foram os únicos produtores de imagem em movimento do Brasil, e à Empresa Pascoal Segreto se devem os primeiros testemunhos filmados no Rio e em São Paulo.
Mas foram vários os inmigrantes que, chegando no tempo do cinema silencioso, italianos indiscutivelmente visionários, deram os primeiros passos para fazer germinar e crescer o cinema brasileiro. Enquanto legiões de lavradores se ocupavam do café, os imigrantes citadinos ajudaram a plantar a cinematografia nacional. Criaram salas, fizeram filmes, construíram laboratórios, atuaram como atores e atrizes, escreveram argumentos e roteiros, produziram. Foram inventores de técnicas, criadores de estéticas e vendedores de ingressos.
Os irmãos Labanca com as salas de projeção e o pioneiro Paulo Benedetti, quem abriu o primeiro laboratório de revelação de películas, precederam com suas invenções o cinema falado e inauguraram o cinematógrafo ambulante, assim como o fez Victor de Maio no Ceará. Foi Francisco Marzullo quem assinou o primeiro filme de sucesso, Os estranguladores, de 1908. Nos primórdios do cinema brasileiro, destacou-se por sua admirável versatilidade o piemontês Vittorio Capellaro, diretor (é dele a primeira versão cinematográfica do Guarani, baseado no romance de José de Alencar), produtor, roteirista e ator. E foram os imigrantes italianos Gilberto Rossi, João Stamato e Arturo Carrari os que detiveram em mãos o mercado cinematográfico em São Paulo, enquanto que o “fazedor de fitas” de Verona, Igino Bonfioli, abria os caminhos para o documentário e para a ficção em Minas Gerais, onde foram pioneiros também Pietro Comello e Humberto Mauro.
No decorrer dos anos, os italianos continuaram a influenciar decisivamente o cinema brasileiro. Os filmes Agulha no palheiro, de Alex Viany (1953), Rio, 40 graus, de Nelson Pereira dos Santos (1955), e O grande momento, de Roberto Santos (1957) foram os precursores do Cinema Novo e tiveram como grande inspiração o Neorrealismo italiano.
Em 1950, na cidade de São Bernardo do Campo (SP), dois empresários de origem italiana, Franco Zampari e Cicillo Matarazzo, criaram a Companhia Cinematográfica Vera Cruz, que tinha como intuito sediar uma produção de filmes em série. Durou poucos anos, mas, enquanto o sonho persistiu, o cinema brasileiro foi enriquecido com filmes de produção caprichada, que marcaram época e deixaram um legado para as gerações futuras. Em seus cinco estúdios, camarins e refeitórios, circularam diretores, atores e técnicos que se envolveram com a tentativa, até então numa escala sem precedentes, de industrialização do cinema brasileiro.
Para trabalhar na Vera Cruz, chegaram da Itália técnicos e diretores como Luciano Salce, Ruggero Jacobi e o ator Adolfo Celi, com a missão de implantar no Brasil uma indústria de cinema com um padrão de qualidade hollywoodiano. Em contrapartida, brasileiros como Paulo César Saraceni, Gustavo Dahl e Luís Sérgio Person foram estudar no Centro Sperimentale di Cinematografia di Roma, onde se aprimoraram na arte cinematográfica e conviveram com ninguém menos que Bernardo Bertolucci e Marco Bellocchio. Glauber Rocha, que em 1969 recebeu das mãos de Luchino Visconti o prêmio de Melhor Direção em Cannes para O dragão da maldade contra o santo guerreiro, em sua temporada em Roma realizou Claro (1975), aproximando-se e impressionando Pasolini e Bertolucci com sua estética revolucionária.
Uma ideia na cabeça e um arquivo na mão
Por que REcine? “A ideia é simples: reviver, resgatar, recuperar, restaurar e reutilizar os arquivos audiovisuais”, responde Clovis Molinari, curador e alma mater do Festival. “E poderíamos continuar com os ‘re’: rever, reinventar, redescobrir, reunir, reconstruir, reeditar, realizar... O acesso a documentos audiovisuais raros e históricos é a marca registrada do REcine. Para lembrar, é preciso experimentar. Aquilo que não é tocado, nem visto, ouvido ou cheirado, jamais será lembrado. Para se ter memória da ‘coisa’, é preciso que a ‘coisa’ seja vivenciada. Sem o acesso aos filmes, não há memória”, lembra quem também é historiador e documentarista do Arquivo Nacional.
“Nada sobreviveu de tudo o que foi feito nos doze primeiros anos da história do cinema brasileiro. Nada restou. O filme mais antigo conhecido é do ano de 1909”, lamenta-se Molinari. “Com certeza, nesses primeiros anos iríamos encontrar pioneiros italianos dedicados, como técnicos, intérpretes, diretores, exibidores e personagens que inspiraram roteiros.”
Conta Molinari que durante a semana em que o Festival é realizado sempre chove tanto que o REcine acabou sendo batizado ironicamente como “RAINcine”. Mas este ano foi o primeiro (dos dez) que só houve uma “chuva” impressionante de filmes, exposições, conferências, debates e homenagens que convocaram, durante cinco dias e em forma gratuita, umas 6 mil pessoas.
Foram exibidos 187 filmes, que mostram a poderosa influência que os italianos exerceram sobre o cinema brasileiro, desde os primórdios até o Cinema Novo e na fundação da Vera Cruz. Obviamente, não poderia faltar na programação do REcine uma seleção de obras-primas dos mais renomados diretores italianos, de Fellini a Rossellini, de Visconti a Pasolini.
Destaques para as primeiras exibições públicas no Rio de Janeiro do filme O gerente, de Paulo César Saraceni (2011), e das películas restauradas Leão de sete cabeças, de Glauber Rocha (1971), e Cabíria, de Giovanni Pastrone (1914), uma das mais importantes obras da cinematografia mundial, em versão restaurada pelo brasileiro radicado em Londres, João Sócrates de Oliveira, que palestrou sobre a restauração do filme. Outro dos convidados especiais foi Guy Bourlée, curador do Cine Ritrovato da Cinemateca de Bolonha, Itália.
“O objetivo principal do Arquivo Nacional é transformar os documentos históricos em fundamento para a formação política, educativa e cultural do cidadão”, afirma Molinari. “Queremos promover debates com nomes nacionais e internacionais para ver as relações entre o cinema e a história, ver como as cinematecas estrangeiras estão vivenciando essa delicada problemática de conservação dos filmes, queremos ouvir e discutir com os cineastas que fazem filmes utilizando imagens de arquivo.”
Nesse sentido, o REcine realiza uma Mostra Competitiva apenas com filmes que utilizam –pelo menos em um 40%– imagens de arquivo e, para ajudar a produzi-los, promove uma oficina de vídeo aberta aos estudantes de cinema e ao público em geral para a produção de curta-metragens que reaproveitem imagens públicas de arquivo. Os prêmios são outorgados em serviços –como laboratório, telecinagem e finalização– para que os realizadores possam continuar fazendo os seus filmes. Neste ano, com recorde de inscrições, a Mostra Competitiva teve como júri os cineastas Vladimir Carvalho, Lúcia Murat e Eduardo Escorel, o crítico de cinema Carlos Alberto Mattos e o pesquisador Maurício Lissovsky.
“Ao estimular a produção de filmes que utilizam imagens de arquivo, temos a certeza de que duas coisas vão acontecer”, assinala Molinari. “A primeira é a descoberta para muitos jovens das imagens do arquivo como uma fonte extraordinária para a criação de novas obras. O passado pode ser revisitado, e velhas ideias sobre velhos assuntos podem experimentar novas abordagens. A produção de filmes que têm imagens de arquivo podem ir além dos documentos biográficos convencionais, as retrospectivas de um passado pisado e esquecido. Além do uso tradicional, existe um campo de experimentação que é também pouco conhecido. O custo não é alto, novos conceitos históricos podem ser inventados fazendo filmes com imagens de arquivo que não sejam apenas lembranças ou emoções nostálgicas. A segunda importância desta ideia de estimular filmes que nascem a partir de filmes de arquivo é a possibilidade de garantir a ampliação do tempo de vida útil das imagens do passado. Quer dizer, na medida em que um realizador procura imagens do passado, essas imagens vão passar por um processo de laboratório que assegurará a sua preservação por mais um tempo. Se o original não sobreviver, os fragmentos utilizados na nova obra seguramente resistirão um pouco mais e chegarão às futuras gerações.”
Já dizia o filósofo, compositor e poeta, Antônio Cícero: “Guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la. Em cofre não se guarda nada. Em cofre perde-se a coisa à vista. Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por admirá-la, isto é, iluminá-la ou ser por ela iluminado.”
Um olho na história e outro na estética
O REcine nasceu em 2002 com o objetivo de oferecer ao público imagens extraordinárias, debater sobre as dificuldades no trabalho de armazenamento e preservação dos registros fílmicos, tornar mais acessíveis os acervos para os pesquisadores, realizadores e amantes da sétima arte em geral, e estimular a reutilização dessas imagens para a realização de novas obras audiovisuais.
Essa primeira edição (na época, Mostra de Cinema de Arquivo) aconteceu em apenas um dia, mas seu caráter singular lhe garantiu um rápido ingresso ao calendário cultural da cidade e do Brasil. Os problemas de preservação encontrados pelas instituições custódias dos acervos foram debatidos amplamente, e a história do cinema brasileiro foi abordada mediante a exibição de filmes mudos e mais antigos, com o acompanhamento de um pianista.
Em 2003, o festival ganhou mais um dia. A programação reuniu fragmentos de filmes censurados durante a ditadura militar brasileira, e a participação do então sindicalista Luiz Inácio Lula da Silva em uma assembleia com 70 mil pessoas, em São Paulo, foi um dos eventos de destaque.
O terceiro REcine entrou em cheio nas revoluções e contrarrevoluções da segunda metade do século XX. Foi nesse 2004 que foi estreada uma das atrações do festival atual: a Mostra Competitiva, com filmes realizados a partir de imagens de arquivo. Também foi nessa edição que o REcine se tornou internacional, estendendo-se a sua duração a cinco dias.
Em 2005, a programação do festival tratou de uma das paixões brasileiras, a Televisão, e no ano seguinte, focalizou-se nos movimentos de vanguarda de inícios do século XX e no experimentalismo dos anos 60 e 70.
O ano de 2007 foi a vez da Imprensa, sendo uma das atrações a apresentação de nosso compatriota Aurelio González e a história dos negativos perdidos de “El Popular” durante 33 anos, uma amostra de mais de 30 das suas fotografias organizada pelo Centro Municipal de Fotografia da Prefeitura de Montevidéu, a estreia do documentário Al pie del árbol blanco, de Juan Álvarez (2007), e a palavra do próprio Aurelio, que conquistou risos, lágrimas e o aplauso em pé de uma plateia cheia de entusiasmo.
Em 2008, ano em que o Brasil comemorou meio século da primeira conquista de uma Copa do Mundo, o tema do REcine só poderia ser mesmo o Futebol. No ano seguinte, a história do Rádio no Brasil ocupou as telas, as mesas de debates e as páginas da Revista Recine. E em 2010, o Festival se concentrou na profícua relação da música brasileira com o cinema.
Leonardo Moreira
Publicitário e jornalista
Montevidéu - Uruguai
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